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sexta-feira, 24 de março de 2017

O começo da vida, animada


Circunstâncias (ou meu subconsciente, vai saber - Freud explica?) me levaram esta semana a assistir na Netflix dois documentários que formam uma dobradinha muito interessante. Um foi a produção nacional, fortemente recomendada, O Começo da Vida. O outro foi o indicado ao Oscar deste ano, Life, Animated.

Como o próprio título já insinua, O Começo da Vida foca nos primeiros meses e anos dos bebês e crianças, trazendo um retrato atual e propondo reflexões sobre a importância deste período para o desenvolvimento do ser humano e da sociedade como um todo. O conteúdo é rico e emocionante, mas o formato não foge do padrão de um documentário básico. Não que isso seja um fator primordial, mas não há nada que distinga esta obra de um trabalho destinado à TV ou à web.


Aliás, talvez ele funcionasse melhor como série, pois com tanto assunto para abordar, fica uma nítida sensação de superficialidade. Passando pelas novidades na área cognitiva e pelos mais variados tipos de casais, bebês e famílias, em condições sociais diversas e com culturas distintas, havia material suficiente (e suficientemente interessante) para um aprofundamento maior. Documentários normalmente são mais memoráveis quando dissecam a fundo um tema ou sujeito específico. E a especificidade muitas vezes acaba se mostrando um microcosmo de algo universal.

Mas, mesmo sem essa singularidade, o filme consegue ser sensível e comover (e por vezes partir o coração, mesmo), principalmente com suas belas imagens, embora algumas delas sejam sufocadas por sua trilha sonora. E assim também, a presença de Gisele Bündchen destoa negativamente, sufocando as pessoas comuns - tanto as que compartilham tela com ela, quanto às que a assistem. Enquanto todas as mães e pais têm seus momentos de interação com os filhos, a Sra. Perfeição aparece sempre sozinha, falando com toda a propriedade do mundo. Não seria melhor humanizá-la (e manter coerência com o resto do filme) também mostrando-a com os filhos? Será que ela não quis "expô-los"? Ou será que no momento da gravação eles estavam do outro lado do mundo com uma babá que ganha por mês mais que uma mãe trabalhadora ganha por ano no Brasil? Por mais que o discurso dela ali seja antimaterialista, fica difícil desassociar sua imagem de uma personagem e ignorar que trata-se de uma pessoa com recursos absurdos para criar filhos. Em detrimento à produção, que não pontua a condição da modelo (e nem sequer lhe dá uma legenda, claro, é óbvio que todos a conhecem), o contraste não intencional com algumas famílias que são apresentadas mais para o final do filme é estarrecedor. Seria mais válido deixá-la de fora e investir mais nos anônimos.

E os grandes momentos do filme são justamente os pequenos momentos, com os anônimos, quando a câmera parece desaparecer no ambiente e permite a imersão do público na cena, apenas para contemplar passagens cotidianas, mas não menos significativas. A espontaneidade da conversa de um menino com uma outra criança num playground, que traz uma revelação sobre sua família - tão natural para ele, é um desses momentos mágicos que só pôde ser captado porque a câmera simplesmente estava ali presente, sem seguir roteiro algum.

É esta presença-ausente da câmera um dos pontos fortes de Life, Animated.  A história de Owen Suskind aqui contada poderia muito bem ser conteúdo de uma versão mais longa de O Começo da Vida. O filme acompanha este jovem de 23 anos de idade se preparando para morar sem os pais pela primeira vez, enquanto relata também sua infância mesclando as tradicionais imagens de arquivo e entrevistas com inspiradas sequências de animação tradicional.


Sem entregar muito os desdobramentos de Life, Animated, pode-se dizer que o documentário lida com recursos que uma criança pode descobrir para superar dificuldades e limitações e ao mesmo tempo entender, se expressar e interagir com o mundo ao seu redor. No caso de Owen, os desenhos da Disney tiveram fator preponderante. Embora existam vertentes anti-Disney por aí, é inegável o formidável efeito benéfico sobre Owen. Quatro anos atrás comentei por aqui que os filmes têm poder transformador e às vezes parecem ser feitos para uma pessoa específica. Neste caso, não restam dúvidas de que a Disney fez e ainda faz parte daquela "vila inteira que é necessária para se criar uma criança", dita lá em O Começo da Vida. Existem as armadilhas do 'felizes para sempre', e Life, Animated não se esquiva disso. Mas, o visível brilho que aparece nos olhos de Owen quando assiste às animações é único e não se mostra presente, por exemplo, quando ele olha para sua namorada (na sua cabeça o seu 'feliz para sempre').

Estes dois filmes são obrigatórios para quem já tem filhos, e precisa sempre ser relembrado de agradecer a grande dádiva que recebeu, e também para quem não tem, e precisa ter uma noção da gigantesca responsabilidade que têm estas criaturas chamadas... seres humanos.


O Começo da Vida (nacional), 2016




Life, Animated (sem título oficial em português), 2016




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